MOTÔ DE CHARRETE.
Foto Marina da Silva. Belo Horizonte
Marina da Silva
Foi essa expressão que me veio à mente ao deparar - ali aos pés do Sagrado Coração de Jesus, uma tradicional instituição educacional de Beagá _ com um casal de catadores, dormindo entre sacos de lixo e o carroção.
Condutor de charrete e carroças, este era o futuro profissional, acreditava-se ainda ali nos anos oitenta, para os indivíduos que tinham pouca instrução ou desprezavam o ensino. A educação era o único meio de melhorar de vida; às pessoas pouco instruídas cabiam os trabalhos pesados, puxados, árduos, quase sem valor na sociedade, como por exemplo, o condutor ou motorista de charrete.
Carregar e descarregar carroças de lixo, de entulho, de coisas, de bichos, de gente, numa jornada longa, contínua, exaustiva e estafante. Pouco ou nenhum estudo era sinônimo de trabalho desqualificado, duro, mal pago e mal visto. Não deixou de ser, mas atualmente, graves mudanças vêm afetando de forma drástica as classes miseráveis, uma inversão perversa, semântica e morfológica na profissão de condutor de carroça.
Com a crise global de empregos, o avanço das questões ambientais, com o boom midiático e apelativo da responsabilidade social e individual com o planeta, levando caixote da onda verde, os burros vêm sendo substituídos pelo homem: o motô de charrete transformou-se literalmente no motor da charrete e incomoda menos a ordem e ao progresso do que o animal disputando com pessoas e veículos às avenidas e ruas.
Centenas, milhares de pessoas, principalmente nas metrópoles, centrópoles e mesmo nas pequenópoles, agora são a força motriz de carroças e carroções que sobem e descem as vias centrais, catando lixo reciclável, puxando imensas, descomunais e pesadíssimas cargas. 500, 600,700 e até mesmo 800 inacreditáveis toneladas de lixo no lombo, isto é, nos braços!
Homens, mulheres, idosos, jovens, adolescentes, crianças, grávidas, famílias inteiras jogadas ao léu, embrulhados na falácia da nação possível e sustentável protegendo o planeta, cuidando do meio ambiente, vivendo, comendo, dormindo e reproduzindo-se do lixo e em meio a ele, suportando, tal qual formiga, um peso social superior ao próprio tamanho e força.
A vida lhes pregando uma peça, fazendo-lhes um papelão e eles, para garantir _ através do trabalho honesto, a dignidade, a decência, a honra, a cidadania _ refazendo e recriando e reciclando, com papelão, plástico e latinhas as suas vidas.
Transformados em ET’s na própria terra, moradores de um submundo cada vez mais habitado, em nichos e refúgios de lixo e no lixo, num meio saprófito e em relação promíscua com uma sociedade SLUria, onde de boa parte da população vem sendo extraída uma mais-valia absoluta inimaginável, imputando aos pobres, como única forma de garantir a própria sobrevivência, a função e a responsabilidade pelo serviço de limpeza e conservação do universo.